terça-feira, 11 de agosto de 2009

NO TREM



Naquela noite os trens da Central estavam vazios. Era Copa do Mundo, Brasil contra Argentina. A Central com seus típicos cheiros de fezes e urina, invadiam o ouvido de Lia. Só os mendigos dormiam em paz.
Ela pegou o trem pra casa . Eram nove horas. Todos estranhavam sua coragem. Mas ela, mulher sem atributos e sem posses, nada tinha a temer.
A composição partiu, seu vagão só tinha um bêbado ressonado calmamente num canto. Uma das lâmpadas estava queimada, o q deixava o vagão numa certa penumbra.
Na estação do Riachuelo entrou um homem soturno. Trajava uma camisa do flamento e uma bermuda jeans. Talvez tivesse 18, talvez 20 anos. No braço uma águia tatuada.
Lia não teve medo. Tinha medo de pouca coisa, mais temia era diabetes, “Tia Zezé sofreu tanto, coitada”. Ia absorta.
Ela só estava indo embora naquele horário, apesar do jogo do Brasil. Correta como só, não gostara da queixa do chefe a respeito das respostas a serem dadas de alguns emails acumulados. Ficou sozinha no escritório, dando fim no trabalho acumulado.
Trabalho monótono. Não falava com ninguém, era eficiente e seca. Era apenas cordial, mas nunca pessoal. Lembrava no caminho de volta , entediada, de um pisão no pé que levara cedo, das crianças pedintes na hora do almoço, do constante cheiro de urina da cidade.
O Homem do Riachuelo a abordou: “perdeu minha tia”!
Lia entregou a bolsa sem susto, quase entediada. Nada havia de valor: uns poucos trocados, batom, lenço, retrato do sobrinho, celular barato, agenda.
Ele tinha olhos esbugalhados e abriu a bolsa afoito, resfolegava, estava visivelmente drogado. O Bêbado resmungou no canto, mas continuou dormindo.
Ele foi jogando suas coisas no chão, pisava em cima delas. Cuspiu na escova de dentes de Lia.
Ela sentiu grande ira. Pensou nas esmolas que dava aos miseráveis, em todos os menores remelentos que um dia ela quis chutar,mas que a boa formação católica impediu. Pensou nas velhas de feridas abertas na Uruguaiana, sentiu a náusea que aprendera a controlar com o tempo.
Na estação vazia do Méier, o bêbado desceu cambaleante, sem se dar conta do que acontecia. Quando o trem partiu, Lia sacou do bolso do casaco uma pequena pistola prateada, presente do seu falecido pai militar. Ele dizia que todo mundo tem que saber se defender. Sem hesitar, ela atirou.
Por um instante ele olhou atônito, como se tivesse sido traído. O primeiro tiro acertou seu braço. O Segundo, logo em seguida, acertou a barriga, o terceiro , a cabeça.
Agora ela era feroz e avançava impetuosa sobre ele. Ele estrebuchava e ela pisou com vontade na mão dele.
Uma massa cinzenta saia de sua cabeça. “Tem miolos, esse verme” Ela pensou.
Catou lentamente suas coisas do chão. Retocou seu batom com certo prazer. “Demorei tanto a achar essa cor de batom...”
O homem morto gemeu um pouco ainda, depois silenciou.
Só o “ tatac tatac” do trem sobre os trilhos. Estação do Engenho de dentro, ela ajeitou os cabelos e saiu do vagão. Desceu as escadas da plataforma impecavelmente, com a paz dos anjos e seguiu para sua casa sem culpa ou pesar.
Na rua escura só um grito de gol . Do Brasil. ( de 9/9/96 )